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Há um ano superamos o medo e o isolamento característico do individualismo. Sabe, aquela eterna busca por soluções imediatas ou estruturais que pela correria ou pela comodidade acabamos por encaminhar sozinhos/as?! Então, percebemos que coletivamente a nossa força para resolver as coisas, propor e até mesmo construir outras tantas seria maior.
É como diz a canção – “Ô companheiro me ajude que eu não posso cantar só / Eu sozinho canto bem mas com você canto melhor”! Assim buscamos fazer nossa caminhada. Uma força coletiva.
Bem, não é que percebemos isso da noite pro dia. Chegou um momento em que precisamos ter isso mais claro e organizado para poder dar aquele passo a mais – a ação. A fomentação do que chamamos de festa – a conquista de nossos direitos deve ser sempre celebrada, assim chamamos a noite da ocupação – foi composta por vários elementos, várias trajetórias e temperos. Talvez o mais importante – nosso sentimento de pertença, nosso lugar no mundo, o território que nos envolve e a comunidade que nos acolhe, ensina e ressignifica cotidianamente. Daqui partimos para uma longa jornada – retomar a cidade a partir de onde estamos, compreendendo quem somos, o que nos constrói e até onde podemos chegar. Ufa!! Ninguém disse que seria fácil, mas tem sido um aprendizado bem cabuloso e prazeroso…
Para compreender um pouco do que estamos falando, é preciso contar brevemente a história deste local.
O Mercado Sul foi construído na década de 50 em Taguatinga, antes da inauguração de Brasília. Surgiu em uma cidade feita para e por trabalhadores recém-chegados à região para a construção da capital e que, movidos pelo sonho de uma vida melhor, mudaram-se para o Planalto Central, não encontrando abrigo na anunciada “modernidade” que ajudavam a edificar com seu suor. Com o tempo, Taguatinga consolidou-se como realidade para estes trabalhadores e Brasília um sonho cada vez mais distante. E foi nesta realidade que o Mercado Sul foi construído como um dos primeiros centros comerciais do Distrito Federal, mantendo uma forte movimentação nesta área até a década de 70, quando iniciou-se um período de decadência comercial e vários espaços foram desocupados, tendo início uma dinâmica mista de ocupação e abandono.
Ainda na década de 70, adentrando os 80, o lugar transformou-se em um reduto para um segmento identificado com a boemia underground de Taguatinga. Músicos, poetas e artistas de diversas linguagens e propostas passaram a vivenciar os becos do Mercado sul, montando seus espaços de criação e trabalho em lojas no local. Aos poucos as lojas também passaram a servir como moradias e a receber pequenos empreendimentos que ofereciam serviços diversos como conserto de estofados, lanternagem, sapataria, marcenaria, serralheria, bares, dentre outros.
Na década de 90 o ponteio da viola ressoou no beco com a chegada do fabricante artesanal do instrumento (luthier) “Seu Dico”, que junto com a família iniciou uma fértil ocupação artística integrada à chegada de antigos e novos moradores e trabalhadores.
No fim da mesma década e início dos 2000 deu-se a chegada do grupo de teatro Mamulengo Presepada, cuja sede viria a se tornar o Ponto de Cultura Invenção Brasileira em 2005. Nos anos seguintes, o Invenção tornou-se um espaço catalisador e agregador de vários fazeres da cultura e jovens da região, tendo firmado várias parcerias e foi contemplado com vários prêmios pelo Ministério da Cultura. A movimentação cultural estimulada e proporcionada por este espaço ajudou a consolidar uma intensa dinâmica de processos formativos que contribuiu com a criação de diversos coletivos e grupos culturais, facilitando também a acolhida de vários projetos e sonhadores de várias partes do país e do mundo.
De portas sempre abertas, o Beco da Cultura, como também ficou conhecido o Mercado Sul, viu chegar e surgir vários processos organizativos, e como já mencionado, nele foram criados vários coletivos e projetos culturais, tendo destaque mais recentemente a criação do “Espaço Cultural Mercado Sul”, que durou cerca de 3 anos mantido por 4 coletivos e que acabou sucumbindo, dentre outros fatores, à pressão e especulação imobiliária, motivado pelo aumento de aluguel. São tantos os coletivos e grupos criados no Beco que não cabe mencionar aqui pra não se cometer injustiças por esquecimento.
O Mercado Sul acolhe diversas propostas e experiências, constituindo-se uma trama de relações e ofícios diversos, um verdadeiro encontro de fazeres e conhecimentos de distintas matrizes que constroem um sentimento de partilha de destino genuíno de uma comunidade. Em seus becos, lojas e moradias emergem uma organização assentada no território, ligada aos saberes tradicionais e populares, enredada cultural e politicamente com outros grupos e lugares, aberta ao novo que solidariamente respeita a vida e o outro, marginal no sentido de não se interessar em compor o mainstream cultural e autonomista na práxis cotidiana e no desejo de um mundo economicamente justo e ambientalmente sustentável.
No Beco sambamos, brincamos coco e jongo; foliamos em fevereiro e junho (isso quando não atrasa…); jogamos capoeira e futebol; cantamos rap, repente e maracatu; dançamos break, forró e baião; temos espaço para o teatro e para as façanhas dos mamulengos; para experiências que promovam a saúde da mulher e coletiva; reciclamos e ressignificamos materiais como o papelão e sacos de cimento, dando vida e sonoridade a eles; construímos e partilhamos espaços de economia solidária; bicicletamos a cidade com nossas rodas rebeldes; criamos vídeos, trabalhos gráficos e projetos com software livre; nos articulamos com propostas agroecológicas e nos organizamos para ir às ruas por nossos direitos, seja contra a tarifa da máfia do baú, seja por uma moradia digna em uma cidade que pertença verdadeiramente a todos/as.
O Mercado Sul também é um espaço de constante aprendizado, onde são estimulados e reforçados os sentimentos e princípios de cooperação, horizontalidade e laços comunitários. Em geral, os processos educativos buscam respeitar o conhecimento dos/as participantes, partir da realidade concreta e não menosprezam elementos como o sagrado e a espiritualidade, desde que não reforcem práticas e relações opressivas.
É neste caldeirão que no fim de 2014 e início de 2015 se deram as primeiras movimentações e articulações preparatórias para o processo de ocupação que aconteceu na madrugada do dia 6 para o dia 7 de fevereiro deste último ano.
Éramos um grupo de fazedores e produtores de cultura, atores, atrizes, cantores/as, artesãos e artesãs, costureiras e cozinheiras diante de uma sombria realidade de abandono do poder público e domínio do capital imobiliário, que preferia manter uma série de espaços fechados e insalubres, valorizados numa nefasta lógica econômica urbana, que torná-los vivos e pertencentes a uma cidade acessível, acolhedora e saudável. Alguma coisa precisava ser feita e ela se deu através da coragem e organização.
Nos mobilizamos em torno de um grupo que passou a se chamar “Movimento Mercado Sul Vive” (MSV), e nos articulamos com outros movimentos parceiros e com mais experiência de ação, como o Movimento Passe Livre (MPL) e Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem-Teto (MTST). Este tinha planejado uma grande ação no início do ano promovendo várias ocupações simultâneas e solidariamente nos incorporou no processo que emergiria na madrugada do dia 7 de fevereiro. É neste período (vivo, mas bem tenso viu…) que também nos aproximamos do coletivo da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (AJUP), grupo com quem consolidamos uma boa aproximação ao longo da caminhada.
Aí “nascia” o MSV que agora completa um ano de muita resistência, superação, festa, produção cultural, aprendizado com a delícia da rebeldia, da maturidade política e os sabores e dissabores das tretas (claro, somos uma comunidade demasiado humana!).
Assim seguimos nossa trajetória na luta pelo direito à cidade e na busca da construção de um mundo mais justo e solidário. Compreendemos desde o início da ocupação que a propriedade deve cumprir uma função social e fomos buscar amparo na lei – Estatuto da Cidade, um dispositivo limitado mas suficiente quando se associa a outros diplomas nacionais e internacionais, conhecimentos que vão além do universo jurídico e disposição à justa resistência.
Enfrentamos complexos processos jurídicos, sentamos inúmeras vezes para negociar com os governos na esfera distrital e federal, discutimos e avaliamos patrimônio material e imaterial, aprofundamos o sentido e conceitos de comunidade, cultura, movimento, estado e governo, fomos e voltamos, fizemos cirandas e fogueiras, giramos a cidade em duas ou mais rodas construindo outros significados para a mobilidade urbana, em síntese, não paramos, nos movimentamos constantemente no prazer de fazer o caminho caminhando.
Neste ano fizemos tantas atividades que não tem como listar aqui (não é nos gabando não viu?! É verdade!). Cada vez mais temos nos encontrado no sentido da organização, não uma organização hierárquica e sufocante, longe disso, mas uma organização que nos conduza coletivamente pelos caminhos que temos que traçar e sonhos que buscamos realizar.
Não somos perfeitos e totalmente harmônicos, que isso fique bem claro. Toda quebrada tem treta que não acaba mais, e a nossa não é diferente. A nossa diferença talvez seja que buscamos aprender e crescer com os problemas e não buscar o caminho da violência, seja individual ou institucional. Afinal, quem quer um mundo melhor com mais violência, polícia e presídios?!
Bem, este é o Movimento Mercado Sul Vive que faz aniversário bem no carnaval. Simbólico isso né?! Mas não tira a gente de vagabundo não hein?! O carnaval é uma festa e manifestação popular importantíssima que tem sofrido cada vez mais repressão e perdido espaço. Brasília é o pior exemplo neste sentido.
Um ano construindo dignidade, não somente aquela dignidade moderna e individualista da “pessoa humana”, mas uma dignidade coletiva, comunitária, como bem nos ensinam várias tradições indígenas que só consideram que há dignidade quando o individual, o familiar e o comunitário se associam saudavelmente e caminham de mãos dadas.
Um ano em defesa da cultura popular, da agroecologia, de relações econômicas solidárias e justas, dos saberes e conhecimentos tradicionais em diálogo com sonhos libertários, em defesa de uma cidade livre do domínio da lógica do capital, da construção de processos que superem relações de opressão como o machismo, racismo, homofobia e outras tão presentes em nosso dia a dia. Um ano de luta, festa e pão.
E estamos apenas começando.
Vida longa ao Movimento Mercado Sul Vive e sua ocupação!

♪ ♫ ♩ ♫ Pisa ligeiro, pisa ligeiro / Quem não pode com a formiga não assanha o formigueiro ♪ ♫ ♩ ♫