Caminhando historicamente com a cidade de Taguatinga, o Mercado Sul foi construído na década de 50, antes mesmo da inauguração de Brasília, sendo um dos primeiros centros comerciais do DF. “Conheci aqui quando era realmente uma feira, tipo uma feira livre, gente tropeçando em gente, entre os anos 65 e 68”, comenta Seu Heleno, tapeceiro que trabalha no Mercado Sul desde a inauguração.
A partir da década de 70, a chegada das redes de supermercados à cidade levou muitos comerciantes à falência. Armazém, armarinho, açougue, lanchonetes… O Mercado Sul perdeu feirantes e público. Houve época que as lojas ficaram vazias e outra que virou depósito de bananas, como também conta Seu Heleno. Mas a ocupação dos pequenos boxes de lojas, ora abandonados, ora em desuso, começou aí mesmo.
Ocupação Cultural
Nas décadas de 70 e 80, o que era uma feira em decadência virou reduto da boêmia underground de Taguatinga. Ao lado do Mercado Sul funcionou o famoso e extinto Clube dos 200, por onde passou o Sarro Disco Show e as principais bandas de baile de Brasília. Os dois locais mantiam um diálogo direto, quem ia para o Clube terminava a noite nos bares e casas de prostituição do Mercado Sul.
Para muitos, esses 20 anos de vida marginal foram a face decadente do local. Por outro lado, entendemos que esse movimento já era o início da ocupação cultural. Em meio à boêmia estavam poetas, músic@s e uma série de artistas e pensadores que caminhavam na contramão do sistema cada vez mais capitalista que banhava a Capital. “O Mercado Sul foi minha usina de sonhos”, afirma o fotojornalista Ivaldo Cavalcante, no livro Taguatinga – Duas Décadas de Cultura.
Consolidação e Ocupação
A partir dos anos 90, o ressoar da viola começa a sintonizar outros agentes de mudança para a real revitalização do Mercado Sul. Hoje, ele é uma vila cultural, também conhecido como Beco ou Beco da Cultura. A chegada da família de “Seu Dico”, luthier (fabricante artesanal) de violas, iniciou uma fértil ocupação artística integrada à chegada de antigos e novos moradores e trabalhadores. Seu Dico, filho e neto estão lá até hoje, mantendo a tradição da luthieria.
Nos anos 2000, o mestre mamulengueiro Chico Simões leva para o Beco a sede do Teatro de Mamulengo Invenção Brasileira. Anos depois, a sede vira Ponto de Cultura, espalhando sementes e chamando cada vez mais artistas, produtores e agitadores culturais, como a Oficina Memulengo Gentil, do Moisés. O mestre artesão Virgílio Mota, da Tempo Eco Arte, resume: “Eu costumo dizer que aqui é uma universidade, apesar de eu ser avesso à escola. Mas aqui é uma escola de primeira instância. Eu não trocaria uma mansão no Lago Sul pela minha loja aqui no Beco.”
Outro importante marco nos anos 2000 foi o Cineclube Motirõ. Durante 5 anos, o projeto consagragou o caráter comunitário e autônomo do Beco, em especial com as novas gerações. Foram realizadas oficinas e vivências, além da cozinha comunitária e do acervo livre de livros e filmes. “O coletivo durante muito tempo foi eu e as crianças. Elas que ajudavam a organizar as exibições e as festinhas. Tudo que acontecia era gratuito”, conta André Duarte, idealizador do Cineclube. Por essa época o Beco viveu também os movimentos do Espaço Cultural Terra Vermelha.
Da cozinha comunitário do Motirõ, veio o Caferó, mais tarde Cio da Terra, onde eram produzidos e vendidos alimentos integrais e artesanais, como os deliciosos “pães da Elaine”. Foi um tempo fábrica e depois café. Também a partir do Motirõ, o Mercado Sul abrigou, entre 2011 e 2014, o Espaço Cultural Mercado Sul, autogestionado pelos grupos Eu Livre, Casa Moringa, Estúdio Gunga e Semente do Jogo de Angola. O Espaço puxou diversas atividades internas e coletivas, como o Arraiá do Beco. Vale lembrar a passagem da Tribo das Artes, em 2011, e a crew da Síndrome Criativa, em 2014.
Hoje, o Mercado Sul celebra, dia a dia, uma fusão de fazeres e saberes de pessoas e ações que por lá passaram e ficaram. A boêmia ficou na memória. No Beco tem costureira, borracharia, oficina, prato-feito, café-bar, ateliê, luthieria, espaço cultural, produtora, estúdio de comunicação, rádio, manicure, cabeleireiro, alfaiate, igreja, brechó… Tudo junto, misturado, interagindo com respeito às diferenças. No Beco as crianças brincam na rua, constroem seus brinquedos. Conversamos nas calçadas, plantamos no pneu, criamos e fazemos projetos. Vivemos!
Em meio ao barulho
Concreto e fumaça
Há um beco com flor
Há um beco com graça
A natureza andante
Aqui faz sua história
Num presente que manda
Pro futuro a memória
Pelo direito à cidade
Contra a especulação
Ainda viro este mundo
Em “festa, trabalho e pão”
– Poesia de Keyane Dias, para o zine do Beco